sábado, 24 de março de 2012

PÍLULA DO OUTRO LADO DA LUA - Número 43

Cena de "Viagem à Lua", de Georges Méliès

Na observação de mundo em que me coloco, um lugar com algum privilégio, nada parece pequeno ou insignificante. Pode ser a janela de um trem, de onde olho, distraidamente, a paisagem exuberante cheia de vales, curvas, matas e bichos nativos, descendo pela estrada de ferro de Teresópolis ao Rio, ou o espírito concentrado sobre a lua, acostumado, talvez, a qualquer outro satélite aparentemente estático. Façam sol, façam chuva das coisas vistas, as palavras têm leveza. A essência do que é pouco espesso, seja pluma ou alumínio, não está justamente em melhor apreciar as coisas do mundo? Numa de minhas marcantes visões, vi, sobre o mar, tal imensa, cheia e alaranjada lua ao fim do dia, displicente tanto quanto o aro que ao seu redor surgia. Sorria a lua para mim, como numa cena de Georges Méliès. Passei as vistas pelos cantos do vagão e ninguém mais parecia perceber, entretidos que estavam os passageiros em malhar os próprios pensamentos na poeira dos trilhos. Os homens ou os astros? Quais deles são mais antinaturais? O satélite da Terra ou o homem em sua forma ocasional? Se tão crescente é o comboio ferroviário, o assento, o vidro úmido, não devo ser, portanto, o único a dar respiro à paixão. Se fosse eu só em minha espécie, suponho que não existiria nem mesmo amor, sentimento visto, por aí, rindo, pasmo, em consonância com a passagem do tempo na estação. O riso é este poder universal, comum a todos, mesmo às expressões mais sisudas que ocupam a primeira classe, tão cheios de si quanto da obsolescência do saber. Decidi, então, buscar. Estão próximos aqueles que são um pouco mmais amáveis. Comecei por eles. Edmarcos, por exemplo, jogador do desporto mais popular, porém despovoado, deserto e triste, estava acomodado à minha frente. Dele, o riso é só contração de face e boca. Sem alma, sem júbilo, projeto de amor pouco viável e, para tantos, nada desejável. Sem os sabores de sorvete de coco, tapioca e cupuaçu que o vi tomando no vagão do meio. Mantive o olhar atento ao que lia sobre o Rio e anotei suas expressões. Rio, rindo comigo mesmo, do moço que pedia os bilhetes, outro de molho agridoce. Tão autômato atendente em seu olhar europeu que possuía nome que não mais sei. Uma senhorinha festiva, ao lado de uma criança que se esmerava em tentar dar fim a uma mariposa pousada sobre a cortina dourada, dando-se conta do semblante circunspecto do bilheteiro, ditou, em alta voz, em citação a Oswald de Andrade: "Antes de os portugueses descobrirem o Brasil, o Brazyl tinha descoberto a felicidade". Ditoso fiquei, pois, quando fui proibido de acender a cigarrilha e parei no afã da falta de ar da passarela mestiça para me assumir verão. Pela primeira vez em dias, peguei-me num riso sardônico dos que a sério não se levarão. Eu me esqueci em riso, decidido a me achar na margem do mar e do Rio. Deixei minha bagagem no vagão e, dentro do tempo que me foi dado, saí para caminhar pelas redondezas. Parece existir um espírito novo que resiste na orla. Rapazes que vestem roupas femininas e moças em vice-versa. Trajes sumários à beira-mar. Homens desposados em busca de satisfação sob os tecidos leves dos maiôs de agora. Escutei, ao longe, o instrumento de sopro do amolador de facas e, ao eco, o triângulo do vendedor de taboquinha. Na costa, bem ali na linha, a que separa o mar dos paralelepípedos, ou o oceano de um continente revitalizado, havia um vendedor de água de coco, Renato. Sob sol a pino, dorso nu da cor de crustáceo, calças de tecido cru amarradas por um cordão e dobradas até o tornozelo, e imenso chapéu de palha, ofereceu-me água. E eu cá, com meus botões, sonhando com o chá de hibiscos servido por minha tia Régia. O vendedor riu do meu ar presunçoso e disse: "Senhor, moro na Babilônia, mas não sou daqui". De onde, então, todas aquelas cenas inesperadas que me deixavam algo que boquiaberto? Nunca vi antes nem no Jardim de Alá, ou dos Namorados em Petropólis, nem na Lagoa dos Patos, muito menos na esquina da Rua Piauí, no Engenho de Dentro com a Maranhão. Até os cheiros, de sarapatel, bife acebolado, carne do sol, frutos do mar e pimentão, pareciam render uma nova existência. Que fazer diante de tal contigência? Aceitar o zeitgeist? As coisas no Rio parecem ser assim mesmo, por vezes dor, mas tão logo sussurram ou gritam uma expressão de amor em esquina. Do Kana Kaiana baiano ao Bonfim, do Redentor ao Ed. Manhattan, até o copo de destilado nas mãos cheias de anéis do barão bicheiro. Olhei o relógio de bolso, voltei à Estação Leopoldina e sentei num dos banquinhos de ferro fundido da plataforma. Vi um rapaz de traços orientais em pele negra. Ele me olhou nos olhos e se apresentou. Marcos, tal qual um São Sebastião ao estilo Yukio Mishima. Dei a ele minha pulseira de cascas de frutos secos revestidos a ouro e voltei ao trem para seguir viagem. No momento em que olhei para o perfil desta figura que diminuía à medida que o trem partia, estremeci com pagã alegria. Minhas mãos iniciaram um movimento que nunca tinham sido ensinadas a fazer, o de despedida. Senti alguma coisa secreta, radiante, subindo de dentro de mim. Subitamente jorrou perdida em tanto meio sorriso e nua. De minha atenção flutuante, o que para mim é tão produtiva, sobrou-me, outra vez, ao longe, a visão do outro lado da lua.

Marco Antonio Jardim

domingo, 18 de março de 2012

PÍLULA DO FEITICEIRO - Número 42

Iogue sobre a Pedra do Sino, montanhas de Teresópolis

Dos poucos momentos em que abro os olhos - o que normalmente faço para observar, pelo espelho, se minhas posturas estão corretas - percebi que você tem profunda dedicação, contemplação e reverência. Perdão por manter meus olhos abertos em observação, mas é muito bonito de ver. "Que memória romântica e sensível! Como me percebeu? Admiro imensamente essa fluidez com que as palavras são encadeadas. São cenas onde podemos ver, ouvir, sentir cheiro, tato e paladar através de palavras. Suas letras fizeram ativos todos os meus sentidos". Foi uma impressão. Aliás, foi além. Subi as escadas, vi seu rosto e uma expressão que não reconheci. Vi uma moça bonita e um senhor com típico semblante. Abracei Carlos, falei do zodíaco, mas, no canto dos olhos, só observando. Dei um meio sorriso a você, não sei se atentou. E enquanto eu calçava meus sapatos, você olhou. Gosto quando olham e leem o que veem. São pedaços de realidade. Desculpe a longa tergiversação. Às vezes sou lírico, outras prolixo. "A moça? Minha irmã. O senhor? Meu pai. E eu percebendo seus sorrisos e olhares de maneira natural, espontânea, retribuindo. Senti-me visto por dentro, desarmado, despido. E gostei. Moro num lugar onde há muito de mim, onde há calmaria, montanhas em todas as direções, revoadas de periquitos, beija-flor na janela, brisa sempre fresca e inverno frio. Sempre há música ou comidas, ou os dois. Não há, pois, o que desculpar. Está sendo agradável". Gosto dessa conversa compartimentada. "E do que mais você gosta?". De todo dia ser diferente. Penso que amo, às vezes penso que não. Entretanto, hoje penso no exato instante. E, daqui a pouco, poderia lançar um livro, fazer algum sucesso e passar um tempo na Europa. Você aprende a amar? "Já mudei de cidade, casa, amigos, por vezes por obrigação, outras por vontade. Sempre tive que aprender a amar. Qual o dito que carrega consigo?". Uma camiseta de domingo, trechos de livros, capas de revistas, coisas que vou absorvendo devagar. Minha citação é que, nesse momento, vou me levar a passear, almoçar meu prato de comida chinesa preferido, comprar um vinho, um disco, um filme de amor, pra me gostar, me amar. Quer ir comigo? "Convite tentador! Tenho tido tempo pra pensar. Tempo no ônibus a caminho do hospital, tempo para ler o mundo, tempo para meditar. Qual o seu tempo?". O de alguma canção. O de dançar sobre a cama ao som de um disco de verão. O tempo dos livros de cabeceira. Você gosta de sorrir? "Sim. De chorar também". Curioso. Sorrio pelo motivo mais banal e pelo mais profundo. Gente me faz sorrir, piadas nem tanto. Boas histórias, cenas inesquecíveis, rostos bonitos (sorri muitas vezes olhando o seu), cheiro de tempero. E choro com cena de novela e filme antigo. Você se acha bonito? "Por dentro sim. Por fora, nada de extraordinário. E você? Quais seus grandes prazeres de viver?". Comer, dormir, rezar, sorrir, amar, ler, escrever, sonhar e silenciar, entre outros inconfessáveis. "Pois eu gosto de cozinhar, de praticar yoga, de estar perto de meus pacientes, de viver música, ouvindo, assistindo ou tocando". Então você toca instrumentos? Encantador! Por que não casou? "Porque não tenho um canteiro pra firmar minhas raízes. Mas toco piano e me divirto com acordeon, pandeiro, triângulo, castanholas, flautas e percussão". Então você é um feiticeiro. Logo desconfiei. Como sentia falta de conhecer alguém de espécie assim. "Mas feiticeiros vivem em linha tênue". Contudo, são eternos aprendizes. Sempre estão pasmos com o mundo. Boquiabertos com as coisas que passam à frente. Quase perdidos. Explica o porquê do seu nome ser tão bonito quanto você. "Eu gosto do seu. É forte, charmoso, imponente. Quero conhecê-lo pessoalmente". Logo hoje que estou tão frágil, sem luz e acuado? Tem um abraço de cinco minutos pra me conceder? "E uma troca de olhar, se também precisar. Você tem medo?". Sou ponderado e sereno, mas também sonhador, desprendido em excesso. Você pode ficar um pouco mais? Se tivesse por aqui, roubaria um beijo seu. "Estou no sofá com forro de partitura, um banquinho de madeira crua à frente, uma estante de livros, uma viola caipira à direita e plantas à esquerda. Quero só ser especial. Nem mais nem menos, nem igual". Como o que vê no trajeto que o ônibus faz? "Pego o ônibus na Rua do Catete, passo pelo Aterro do Flamengo, por baixo dos arcos da Lapa, em frente à Central do Brasil, passo pela linha amarela e caminho um pequeno trecho até o hospital. São pedaços de paisagens". Nossa! Minha vida é assim todo o tempo. E não sou eu quem dito. É mágica, ou feitiço. Gosta de cupcake? Ou de beijo na boca? "Gosto muito de você. E da chuva que cai forte lá fora, com os pingos brilhando nos paralelepípedos, sob luz alaranjada, típica do interior. Estou feliz e confortável". Então explica como ainda eu não tinha visto você no mundo. "Não sei. Temos tanto em comum, não é?". Bigodes de foca, nariz de tamanduá, bico de pato e jeitão de sabiá? É tão lindo. Deixa assim como está. "O que você faz comigo? Dê-me o que puder me dar e, em troca, terá tudo que posso te dar. Impossível não te amar". Seria amar, portanto, envelhecer querendo te abraçar? No final, será o que não sei, mas será.

Marco Antonio Jardim

quarta-feira, 7 de março de 2012

PÍLULA DO PEITORIL DA JANELA - Número 41

Imagem de Tim Jarason

Sim, estou na extensão da dimensão do paraíso, do luxo de espontaneidade natural, de alma recompensada. De alguns dias pra cá, meu olhar cerrado se assenta num mar interior, a uma quadra da janela do apartamento. À meia altura da imensidão, abro as persianas de madeira e respiro ar e maresia. Reminiscências ainda da serra, enumeradas. Não como o mundo de cadáveres enunciados sucessivamente no poema de Colombo, mas com um intuito bem longínquo de me livrar delas. À frente dessa janela, uma criança sorri tocando o sino da trave. Mãe e filha passam caminhando, de mãos dadas, vestidas de primavera, ao longo da sacada amarela do casarão da Câmara. Operários, sentados em fila numa sombra de meio-fio, tocam o tempo chupando melancia. De algum espaço gourmet, um cheiro de bolo de puba. E o eco sussurrado de "Louisiana". Um moço, com roupas em desalinho, passeia com cães Basset. E um certo amanhecer cheio de neblina persiste sobre a serra. Alguém, que não enxerguei quem, grita uma declaração de amor. Um jovem pai ensina a filha a andar de bicicleta. Num poste, um cartaz mostra John e Yoko na cama de um hotel, pedindo paz. Avisto o sobrado, ao lado da igreja da Capelinha, antes assombrado, inaugurando agora uma escola de balé. De um carro em baixa velocidade, posso ver um menino cheio de gracejos sorrindo pra mim. De um raro avião no céu azul, um sinal. Um senhor, balançando uma amendoeira, tenta espantar os pássaros. Um outro anônimo, em frente ao banco da orla, acena a esmo. Vejo, encostado no peitoril da janela, uma garota de cabelos cor-de-rosa. E um companheiro se apoiando nos ombros de outro que pilota uma motocicleta. Puxo meu short Soul Carioca sobre as coxas, pra sustentar uma perna sobre a outra. Recordo o gosto do torrone, a conversa amena e o jardim de Rafaela. O convite de Helinha para um jantar à beira-mar. Repasso um poema de Ezra Pound. O que rima sensibilidade e radar. Ou a conversão da "Conversa Infinita" de Maurice Blanchot. A madrugada. Os verbos da doação de jeans à Cotton From Blue to Green: reciclar, reutilizar, reduzir. E o sotaque esmerado de Will. Também a sugestão de Túlio a Clarah Averbuck e suas coisas esquecidas atrás das estantes da praia grande no escuro, do que aconteceu em Woodstock e do cheiro de chuva na última sexta-feira. Da feira de biscoitos, pão de alho e requeijão que fiz ao lado de minha mãe. Da frase do rapaz na fila do Candeeiro: "Te vejo há dez anos". Debruçado no parapeito, vejo até o mar do Rio de Janeiro. E a nascente do Orinoco na América do Sul. E a posição do bailarino no gestual iogue de Kenio. Vejo Don e o dia passar. E a pungente dor de Émile Friant. "Há tanto tempo que te amo", parece dizer lá da esquina onde sumiram os homens. Apagando o cigarro na neblina, onde homens outros sumirão. E o choro de despedida do casal. O luxo do semileito, o leito, o sono do leitor. Estou, sim, de olhos fechados num paraíso, tamanho o esplendor. Só solitários inveterados como eu para dar demasiado valor especial a imagens e sensações que se correspondem assim. Debruçado na travessa inferior dos marcos da janela, nada mais vejo além de pegadas. Nada além de registros, lugares vazios e histórias cruzadas.

Marco Antonio Jardim