terça-feira, 20 de novembro de 2012

PÍLULA DO BALCÃO FELINO - Número 55


Reza a lenda que os gatos foram criados quando a Arca de Noé ficou infestada de ratos. Noé ordenou que os leões espirrassem. Do espirro dos leões se formou o gato. "Anjo da noite", alguém disse que sou. Observador de balcão, impassível, algo livre, minucioso no olhar apertado, nas pesadas olheiras e fixo numa direção. Explicação alguma isso requer. Ao dia, sou felis silvestris catus. Doméstico, mas não domesticado. À noite, quando desejo, sigo o dono. E abro um sorriso bobo, parecido com sussurro. Gatos também são assim, sabem a hora de rir ou chorar, ao fim do ronronar do amor imaginado. Quando não, vou ao lado oeste em madrugada de sábado, ao lado leste da mãe felídea feiticeira, blindada pelo balcão, protegida sob pelos ondulados. Vandet. Ex-mulher de pescador de ilusões, nunca quis manter gatos em casa. Mesmo pobres, mesmo livres. Nunca houve, para ela, desastres expostos ao mar. Para mim, ao final da noite, sempre houve o balcão do bar. Para ela, expressão facial impassível, coração inatingível. Entre gentes e cheiros, estou sempre ali, no Xamps-Élysées, ratos a caçar. Bufo, esbuno. Ou faço meu rumor contínuo quando contente fumo, descansando a cortina de fumaça sob olhar de um gato branco. Dio. Olhar de profundo verde castanho. Mio. Chamam-no de príncipe, felino do disco voador, daqueles que apanha o sol, a lua e o olhar binocular de Bah para si. Não me distingue, não sabe se sou outro mamífero, não olha por minha janela, não passeia nos mesmos telhados, não provou de minha ração, nem pisou meu chão. As lágrimas em meu pelo listrado não viu chorar. No entanto, noto-o tanto quanto o balcão do bar. Troco, com ele, novelos de lã, atos do madrugar. Por que não habita em minha fisiologia? Meu consolo é a persistência do fluxo das minhas sete vidas. Nelas, nunca há resposta fácil. Um dia, Dio, felino himalaio, não me reconhecerá. Porque gatos também sonham, esguicham e mudam de senhor. Gatos enxergam além do alcance, sentados num banco, com o olhar determinado, um propósito sólido. Nestas horas, à revelia do que observam, pardos, rajados de cinza ou persas, Mila, Vilson ou Kátia, mas sempre gatos. O ponto que fixo é o da alma, que depois descrevo num trechinho poético de guardanapo e nos devaneios do balcão. É ali que exponho meus agrados, meus sorrisos, meus sonhos e minha solidão. Aliás, sonhei com Jhon. O mesmo abraço, murmúrios desconexos e espaço de proteção. Bom presságio, então. No folclore americano, gato que sonha com gato é sinal de bom destino. Eu, felino, pouco caseiro, no mundo real e treteiro, conheci gatos urbanos. Alimentaram-me, acostumaram-me. Idalécio, e o riso do gato de Alice. Inácio, mais corpo que gorjeio. Israel, o gato da geladeira. Wendel, gato preto. Falcão, selvagem. Danilo, bombay fantasioso. Fillipe, de coiro. Alexandre, do bolso pelo avesso. Mazzo e Nara, iscas de peixe bem cozido, donos de Amy. E as gatas extraordinárias, Marlua e Jéssica. À luz da lua, são tantos gatos pela rua. Muitos de alma tão vazia. Será que isso me incluiria? Eu, faceiro. Predador natural de roedores, pássaros e lacertíleos. Por vezes desleal e simulado. Disseram-me, certa noite, no canto do balcão: "Você é um animal de estimação egoísta, solitário, medroso e bem disfarçado". Qual nada, sou é sagrado. No antigo Egito, mantinham-me em templos. E previam o futuro dos meus movimentos. Eis meu furo em sua veia. Na ceia noturna da procissão, por entre sacerdotes salesianos, freiras de túnica cinza, fiéis e cânticos, um alvo dinictis me examinou com atenção. Parecia um cândido marinheiro a predizer sua viagem na observação. Ébrio, tive a impressão de ver Aline, vestida de egípcia Bastet ou Freya, gata nórdica, fértil e sedutora, numa carruagem puxada por dois bengais. Eu, angorá sob a neblina, despeço-me, sumindo no sereno. Quando fecha o bar, vou indo, venerado, sagrado. Pela manhã, espreguiço, passo a língua sobre meu corpo, bebo meu próprio leite. Tal qual assegura a mitologia, saio à rua feito animal de companhia. Vejo um pequeno Miacis sobre os ombros do pai. Fez-me sentir falta do meu. Fui à sala de Chaeles, beijei o gato da família, pedi um lugar à mesa e o paguei com sal. Se olham ao lado, lá estou eu de volta ao balcão, feito garboso siamês, contra o âmbar do portão. Eu e meu estranho coração. Há tempos não sei o que é um bom prato. No fundo, no fundo, eu sou um negro gato.

Marco Antonio Jardim