terça-feira, 22 de novembro de 2011

PÍLULA DA VONTADE DE SER LIVRE - Número 31

Fotografia de Luigi Ghirri

Desde antes de nascer talvez eu saiba que tudo na vida tem um certo fundamento. A própria vida é um edifício com base sólida. Não é das construções que se vê com constância pelas avenidas, pois se faz raro o viver a vida, enquanto mais comum é ver os prédios conformistas das pessoas que apenas existem. É mais fácil, hoje, dizer que as coisas são frutos de explicações naturais. Perdeu a graça falar em milagres, acaso, sorte ou destinos pessoais. Sobretudo se movidos por estrelas. É mais fácil provar uma metade do que ser grande ou inteira. Do que ser todo em cada coisa boa, como escreveu Pessoa. Do que ser livre. Aliás, a liberdade é, dos fundamentos, o maior de todos. Maior que o adágio da vida, até. Na última madrugada escrevi, exausto, no mural: terminei a análise de uma extensa pesquisa. E, logo em seguida, questionei como se olhasse em meus próprios olhos: estou livre? Ninguém leu, ninguém curtiu. Muitas pessoas sequer assistem filmes inteiros, como fez, encantado, Fabrício. Talvez nem saibam sobre o Barravento. Nem ouvem jazz. Não sabem sobre nós, prós, contras e sobre imperfeição. Certa feita, enquanto caminhava, ali pela Lisboa, um sujeito de meia-idade, já entregue às rugas, perguntou-me as horas quando, no fundo, queria mesmo uma compensação. "Saí do trabalho tarde e, na verdade, queria encontrar alguém", disse-me, preso em seus próprios vícios. Eu mesmo tenho os meus. E aquele velho pode ser eu. Tenho vício de mar, quando também poderia provar rio de água doce. Vício de amar por uma semana. De observar o mundo e congelá-lo em letras e fotografias. Tenho o mau costume de olhar todas as provas. Esbarrei, uma vez, em fotogramas de um homem obeso, feio e nu. Faltou a mim idoneidade e, a ele, decoro. Não, não sou livre. Estou sempre sujeito a domínio estrangeiro e restrições. Não ganho mesada, não tomo Chandon, nem teço considerações. Aceito as caronas oferecidas por quem dirige um carro que também é meu. Já vi mais de três mil vídeos pornô, mas não fiz nenhum. Não apalpei ninguém, mas permiti que me tateassem a alma. Constatei, atônito, a figura altiva do tempo em minha própria barba. Para Marcos, isso é viver. Numa frase síntese, ele pareceu desprendido de qualquer calabouço. Enquanto eu questiono minha aptidão para vender ou tirar moedas do próprio bolso. E, do calor que faz agora, esta aflição. Logo eu, que sempre gostei do verão. É o tempo - este, sim, livre - zombando da minha limitação. Vanessa perguntou, então, o que parece ter valor universal para mim. Trabalhar, escrever, publicar. Baixar discos por dia, assistir filmes e ler mais revistas que livros. Fazer yoga, nadar, fumar vez em quando. Cuidar do pequeno, da família, do campo. E do quarto, que é templo, mas nem tão amplo. Sair, respirar, dançar em alguma pista. Viajar, não tanto quanto eu gostaria. Exercitar a ortografia do sorrir. Caminhar ouvindo música, beber cerveja gelada e dormir. Tentar, tentar outra vez e coisas mais que não posso declarar. Vanessa, em mais uma sinopse real, perguntou-me, tirando do meu rosto o sorriso ideal: "Tudo em você é sempre fantástico assim?". Não, não me faço livre. "Siga suas intuições", costuma dizer Nalim, numa inversão de valores. Antes, eu a aconselhava. Hoje é ela quem faz os ditames da razão. Eu nem sequer cumpro minhas penas em liberdade. E veja que nem sou antiamericano, nem nacionalista, nem estatista. Não sou politicamente correto, nem fanático e nem mesmo um homem prático. Sou tolo. Um bobo humanista. O que me faz calar é o som de um mensageiro dos ventos. É atravessar a rua pra falar com alguém. É viajar de moto por uma estrada de terra. É assistir "Um Lugar Para Recomeçar" só porque Mitch Bradley deseja ver o mar. E roubar araçá no quintal de Seu Cajaíba. Crer em disco voador. Escrever para Leandro Sarmatz, dizer que sonho em ser livre e acreditar que terei respostas. Não, não tenho o poder de qualquer proposta fazer. Ou pensar como Lucas, em que a Liberdade é seu lugar favorito. Ele, naturalmente, se referiu ao reduto de japoneses em São Paulo. Eu falo do estado da alma. Da vontade de ser livre e diferente pensar. É isso que mereço ter e que desejo saber pra, afinal, feito um oriental, me libertar.

Marco Antonio J. Melo

terça-feira, 8 de novembro de 2011

PÍLULA DA CAMINHADA - Número 30

Cena do caminho para Woodstock

Estou pensando em privilegiar certas ações para a vida. Não sei se posso chamar de ativismo ou mesmo tendência para sentimentos religiosos. O que me move é a leveza da observação. E a tentativa de mantê-la frente às adversidades que começam a fazer convites para o enfado. Quero ir às ruas por incômodo ou fardo. Fazer como na praça Zuccotti, uma ocupação. Juntar-me aos hippies, punks, aos veteranos de guerra com seus rabos de cavalo já grisalhos, às saias coloridas de Bali, às rasteiras de couro, às gentes dançando ao lado, tocando sax, sanfona ou violão, batendo palmas, panelas e vassouras com os hare krishnas, entoados pelo cheiro forte de incenso, o cheiro da ocasião. Não dispenso também os de paletó e gravata, as senhoras de trench coat e as outras que distribuem sanduíches de queijo, bife, tomate e pão de sal. Dos lugares que vou caminhar e das pessoas que desejo ver, a regra é a da diversidade e nada de mal. O único partido que tomo é o de poder escutar Beirut. Em coro, para que a voz, assim em uníssono, alcance o viaduto, a caixa d'água, o mar de Venice ou Salvador. A luz pode ser a de 70, granulada, algo estranha e antiquada, refletindo nas construções, como num filme em super-8. Nessa marcha pública de resgate à alegria, a gente não precisa de polícia todo dia. O que a gente precisa é não esquecer o rosto um do outro e dormir nu, resistente, na cama de um hotel. A gente precisa romper com a poesia de ontem e reatar o verso de hoje. Não envelhecer, jogar o mundo inteiro na mochila pra não morrer. Sim, o sonho não acabou. Vou caminhar com os pés no asfalto ou na areia, colocar os sinetes nos tornozelos, pedir carona na estrada da esperança, descer as ruas, deixar a luz do sol entrar e me apaixonar eternamente. Quando eu sair, não vou bater a porta da frente. De vez em quando e tal, mando um postal. E quando eu estiver cansado, volto o pensamento à brandura, tiro a mochila das costas no meio do caminho dos dias e a brisa vai refrescando o suor. Vou seguindo, tirando o pó da roupa e remendando a intuição. Contribuição coletiva? Por que não? Gentileza, cortesia? Nada em vão. E, da porta da casa do mundo, verei um filete luminoso de lua e estrela, no azul profundo do céu noturno de verão. Chamo de céu do Oriente. Abaixo dele, o sorriso do Éden, o olhar azul-esverdeado de Mi do Carmo, as mãozinhas de Luana sobre as minhas, o sotaque mineiro de Graci, as vozes de Clara, Denise, Caíque, e as três meninas Marias chupando pinha na saudosa Angola de Ciro, na orla, na João Pessoa. Ou jabuticaba, laranja doce, manga madura da boa. O céu agora é cor abóbora. Ali, por trás dos eucaliptos. Tem cheiro de figo e de chuva no ar. E as pessoas caminham pelas árvores ou para onde for além de lá. É uma gente assim tão minha, que eu, simplesmente, vou. Do meu coração febril sou portador. Vou para uma Wwoof para trabalhar, viver novo estilo de vida, cuidar de jardins. Lá terei lugar para cozinhar, outro para dormir e capela para orar. Lá vou fazer yoga e meditação. Espalhar amigos pelas mesas e eles se apropriarão, se juntarão todos numa longa chaise, sem idade e sem gêneros, e serão universais. Talvez eu queira viver e ter venturas, sentir e ver diferente das estruturas atuais. Mas o que quero mesmo é poder escolher. Criar ou recriar, vestir-me de cores ou continuar nu, ler Quintana ou Chico Buarque de Holanda, experimentar todos os amores e entregar-me a todos os sabores. Eu quero ter esse poder sem pudor. E, caminhando com os outros, eu vou. Sem muito papo, sem muito explicar. Cheirando a gosto de mar, feito sábado, feito príncipe, pássaro a flutuar. Eu vou do jeito que sou e não quero nem conversa com quem não tem amor. Pode até estar às moscas o meu coração bobo, como dizem. Mas, como se lê no cartaz da caminhada, meu coração não tem corrupção.

Marco Antonio J. Melo