quarta-feira, 22 de julho de 2015

COMEMORAÇÃO - Número 71

Capa do disco "Cinema Transcendental", de Caetano

Estou vivo!
É que venho do sol. Lá de onde o Deus de todos os deuses me escuta.
E de onde ouço as coisas de outros amores infinitos muito além da conduta solar.
No clarão vasto das estrelas a se consumirem, na grande noite maravilhada a se devorar, vivo!
E se eu encontrar, no caminho, algum outro ser com bastante sentimento pra me dar, nem pergunto sobrenome, já que é o amor universal que conduz o homem.
Estou vivo!
E não tenho mais idade pra temer a morte, ainda que a tempestade pareça um tanto forte.
Nestas horas, ando sobre o mar.
E vou dar na varanda encantada do amanhecer.
Vou, atemporal, findar-me em mim mesmo, nos meus dedos, na minha língua, na face do meu verbo ser.
Ao meio-tempo, sentado ao meio-fio da vida, inverto, sorrindo, o cenário e começo tudo outra vez.
Amo tudo outra vez.
É que estou vivo. Com os poros abertos ao mundo e um modo de ver a fundo esta comemoração.
Estou forte, intenso e decidido a seguir todo sólido e todo líquido no corpo e na calma.
Vivo nos gestos da alma.
Com o mesmo olhar e murmúrio do menino que, dentro de mim, confundia a paisagem.
Mas, ao longo dos anos, mudei o destino pra dias de estiagem.
Hoje é dia de visita!
Saio da varanda e vou à sacada sentir o cheiro da chuva que passou.
No horizonte, entardeceu.
Mudo de história, alinho ao sereno bom que toma assento em meu coração e colho liberdade na amplidão.
Vida, tempo, gratidão.

Marco Antonio Jardim

terça-feira, 9 de junho de 2015

ENTRE MAR E CÉU - PARTE II - Número 70

Cena do filme "Interestelar"


Deus?
Onde está?
Inflamo e clamo diante da morte do dia que deixou de brilhar.
Antes pecar, que amar esta noite escura.
É aqui, Senhor. Aqui é meu lar. Este cintilante ponto azul.
Daqui mesmo avisto a luz das estrelas e muito além do que seja e do que for.
Dos eventos do horizonte, além mesmo de onde vou.
Vejo ao longe, ao infinito, todo esse extenso amor, essa Criação.
Vejo os que conheço, os que ouvi falar e todo aquele que já existiu.
Reencontro o cabeludo vizinho, o vigia da bicicleta, o porteiro do prédio e o outro da esquina que viveu em linha reta.
Na poeira suspensa de um breve raio de sol, revejo o silêncio.
Vejo o hippie da pracinha, o barman com um cigarro, o mestre de yoga, a filha de Didi, a moça que passeia com o cão e o verdureiro falastrão.
Enxergo o jovem rapaz com a Bíblia nas mãos, a menina do andar de baixo e meu gato persa à espera no portão.
É aqui, neste mundo solitário, que amo.
E avisto nossa ilusão premeditada de que somos privilegiados na imensidão.
Nós, homens das estrelas.
Destas que nascem e morrem e, quando fenecem, emitem raios ultravioletas.
Ah, as tais estrelas.
Quase todas elas cadentes, brilhando atrás das nuvens cinzas em seus pontos finais e quentes.
Pontos iluminados de esperanças tardias.
E nós, homens falíveis, estacionados nos segundos do tempo a observá-las vazias, quiescentes.
E, por entre as estrelas, ele, o espaço sideral, descerrando seu próprio véu.
Um perfeito horizonte tão completo em sua dimensão que deram-lhe, em estupor, o encantador nome de céu.
E uma segunda alcunha no vácuo deste oceano invertido: Universo.
Eis que verso único sobre este caos infindável.
Força monumental da natureza, desprovida de gravidade.
Eu e minha pequena e infundada verdade.
Mas é daqui, Senhor, deste mundo habitado que tergiverso sobre outras tantas e singulares moradas dos sistemas estelares.
Deixe-me, por favor, nesta fronteira do espaço-tempo.
Porque é aqui que elevo meu pensamento a Ti.
Ergo muito acima das teorias, lá onde tudo se resume.
Sim, eu sei, muito menor é este juízo que a mais silenciosa sinfonia das leis que regem as galáxias, mas é um louvor à Sua direção.
A esta combinação solícita e perfeita que nos faz, dia após dia, pousar felizes sobre as nebulosas espirais.
Sou um flanair das massas astrais, Senhor.
Não deixe, portanto, eu ir tão desencanto à noite escura.
Meu coração ainda bate em órbita.
Ainda vivo! Ainda perdura.
Cheio de poeiras cósmicas, buracos negros e desconhecimentos, mas, na alta noite que se faz, tão enlevado e agradecido vivo.
Permita-me notar, com olhos marejados, esta noite pontilhada das velhas estrelas de Sua infinita casa.
Deixe-me contemplá-las, as estrelas, daqui mesmo, Senhor.
Assim, encerro-me por inteiro num breve poema de amor.

Marco Antonio Jardim

(inspirado no filme "Inrestelar", dirigido por Cristopher Nolan, no vídeo "Pálido Ponto Azul", de Carl Sagan, e no livro "O Grande Enigma", de Léon Denis)

sábado, 2 de maio de 2015

ENTRE MAR E CÉU - PARTE I - Número 69

Cena do filme "Interestelar"

Não. Não se vá tão precipitadamente ao encontro da noite escura.
Depois de febre, dor, náusea, indisposição, há soro, sangue e abstração.
Antibiótico, antitérmico, antídoto à dúvida sem cura.
Viver, insistentemente, é mais que ternura.
Não. Não se vá tão facilmente ao abismo da noite escura.
Tudo que vem agora é mar. E dias de brandura.
Às vezes ar, noutras brisa que esbofeteia a face.
Eu respiraria.
Antes da curva da colina, do crepúsculo da tarde ao alvorecer, há mar.
Aquela imensidão que voga sobre suas próprias águas que não absorvem azul.
Água salina próspera de vida em ouro refletido do sol nu.
Uma visão ao mesmo tempo tão leve e esmagadora quanto a respiração do iogue contemplativo.
Como numa oração celta, eu estava ali para recordar que havia sol. E era vivo.
Ali, na claridade, me vi. Te vi.
Calmo, claro, embevecido de fé, tocando os pés nos sete mares de força estranha.
Tempo, espaço e essa beleza rara de infinito azul profundo.
Um pouco à esquerda do mundo, pensamentos estrangeiros desbotados, cabelos enrodilhados atrás da nuca clara, descompromissados do calor
Vestiam colares de couro e silêncio.
Dias e marés trazendo bons companheiros, sombra, água fresca, risos e incensos.
Não. Não se vá tão apressadamente à noite escura.
Vista branco, pra iluminar as sombras da areia em reverência às urdiduras dos deuses.
Bem pode ser uma camiseta branca qualquer, com imagem gráfica de Radharani, pedindo licença à devoção.
E um pote de barro com água, também branca, a pousar em suas mãos.
Dobre as barras da bermuda alva, para que respingue água salgada de mar nas pernas nuas.
Amarre no tornozelo uma peça de cordas trançadas, de cor musgo, com uma pedra reluzente.
Perto do dia nascer, olhe, na direção do indizível, aquela cor ilimitada do horizonte.
Chore, se quiser.
Lágrima que derrama à fronte é o mesmo que sal comum à extensão de água tão imponderável que mais parece a completa ausência do ruído do mundo.
Eu, como um navio enferrujado beijando a areia, ponho-me ao seu lado, conspirando os fios da praia a esta ventura.
Não, Deus. Não se lance tão amavelmente ao curso da noite escura.

Marco Antonio Jardim

(inspirado no poema "Não vás tão gentilmente nessa boa noite escura", de Dylan Thomas) 

domingo, 15 de março de 2015

ANTES DE MORRER - Número 68

Ilustração de Franciso J. Olea

Às vezes, se determinado alguém nos priva a presença, o mundo esvazia, perde a verdade e a crença.
Deixa saudade, uma recordação quase extinta, como a que sinto das velhas tias de Salvador.
Do bonsai agora seco e da orquídea em flor.
Saudade, companheira de quarto e dos gorgulhos que infestam meu andor.
Tal qual a morte, que não temo tanto assim.
Quem sabe, antes de morrer, eu sinta saudade, sabendo que já me vou, das dúvidas que se assistem em mim?
Será, a morte, ventura ou fim?
Antes de morrer, então, deixe-me despedir, como num presságio, revirando a caixa de poemas, fotografias e pertences envelhecidos.
Te encontrando na estação Wien Westbahnhof e anunciando sua chegada.
Ela, a cápsula mundi, a morte desejada.
A  moça de sapatilha lilás com lacinho prateado, acenando à sorte, aos meus pensamentos, à minha passagem pela vida, aos amores que não se explicam, antes se sentem.
Vi pelas frestas de claridade dos dias que não mentem, num instante de solidão e cansaço, por um quadro torto de madeira nas paredes riscadas do quarto de Marissa, aquela esquina do mundo.
Vi quando ela se revelou em inglês: brain, conclusion, idea.
E meu espírito, invisível, observaria suas reações de estupor.
Renderia uma vista pela janela, no dia entreaberto, meio claro.
A morte. Um princípio de engulho, meio escuro.
Este cavalo solitário numa elevação, numa ilha flutuante, indizível.
Espaço imanente quase incompreensível.
A morte da mãe, da casa demolida, da rua João Pessoa perdida, do ator e do outro que se jogou.
A morte. A névoa, aquosa e espessa.
O forte odor nauseante de ranço à margem dos desaguadouros.
Um silêncio que muito diz.
E ainda uma estreita brecha de sol por entre as folhas da mangueira da casa vizinha.
A morte vinha.
Mas, antes de morrer, vou eu à Via Láctea fazer as cinco orações, uma peregrinação, e dedicar meu olhar à Meca, não por terror, por devoção.
Eis que ela insiste se esgueirando pelas charges, sem muita explicação.
A morte. Agonia, religião torta, inquietação.
Como na fotografia da década de 40, em que se lia no cartaz: o mundo em suas mãos.
Antes de morrer, porém, vou deitar e olhar o velho teto revestido por pano estampado de algodão.
Vou me abster de pronunciar qualquer som, parar de respirar e me deixar perder.
Antes de morrer, tomo um Liberté.
Vou voar, talvez contente, nessa embriaguez inconsciente.
É doce o gosto da morte.
Taciturno, dou-me o aporte, antes de morrer, de brevemente sonhar.
E esse tempo que passa com tanto vagar?
Em sonho, disseram-me: "nenhuma falta fará".
Curioso...despertei com batidas na porta.
Abri os olhos. Não morri!
Morrer ainda é aqui.

Marco Antonio Jardim

(inspirado na canção "Não Tenho Medo da Morte", de Gilberto Gil, e nas reações de apoio ao Charlie Hebdo)

sábado, 21 de fevereiro de 2015

A ARTE DE PERDOAR - Número 67


Não há mistério algum na arte de perdoar. Se não há mais o que mirar na linha do horizonte daquele mar frio, há, pois, novo lance de vista.
Nada há de mais imortal que a vida por inteiro. Nem espíritos santos nem orixás o são mais eternos que a vida. Também sequer seria possível matar um coração acalentado de rancor.
Na remissão das penas, a vista há de largar a costa e descobrir outras terras, paisagens, extensão.
Perdão. 
Antes eram linhas e sombras de uma face só, ou um pretexto qualquer para se ver. Antes eram as horas perdidas do profundo anoitecer.
Perder-se, hoje, só nas horas de prima, às nove da manhã de sábado. Ao lado seu, perdendo-me nas tatuagens. Um tanto a cada dia.
Nelas que me perco, pra que não me esqueça mais de quem sou. Pra que na aparência ou realidade, não me tome o siberiano por labrador, a fumaça cinza do cigarro por outra cor.
Pra que eu não sufoque meu menino interior.
Por isso, as desculpas.
Caminhei à sombra dos muros caiados, no reflexo dos olhares desviados, dos meio-sorrisos, sempre num semblante que se impunha numa alcunha em diminutivo. Desculpa, findaram os donativos destas horas.
As de hoje são ainda mais belas que as de outrora.
Das perdas do caminho que fazíamos a pé, sobraram risos.
Como os que ofertei pela manhã. 
Aceite-os, indulgente. Gaste seus últimos minutos ao meu lado. É o indulto que te dou simplesmente. O breve gesto de uma memória futura, uma recordação. Uma gratidão qualquer. 
Não há mesmo mistério na arte de perdoar.
A música que ouço agora não é mais secreta.
Se não colho mais pitangas, nem recordo nítidos os lugares e nomes de antes, perdoe-me, então, você. Porque algo acontece no quando de agora, sim.
Não há mistério: hoje amo outra vez em mim.
São outras caras, outras capas de discos, outros olhos (mais singulares e apertados, castanhos-esverdeados), outro morro da Cebola, cidades, mares. Outros cinco continentes a amanhecer distante do fim.
Porque não há grande segredo em perdoar. É dia novo, recomeço, outra dança de salão.
É tal qual fechar os olhos e abrir na amplidão.
Outra voz, outro sorriso etéreo, outra claridade do dia que desprendo das cortinas da manhã.
Sim, mistério sempre há de irromper por aí. Pelo portão.
De ontem, no entanto, não tenho mais saudade deles. Daqueles.
Perdão.
Não há mistério algum na arte de desculpar. É, talvez, minha forma de oração.

Marco Antonio Jardim

(inspirado em "A Arte de Esquecer", de Elizabeth Bishop)

segunda-feira, 21 de abril de 2014

GRATIDÃO - Número 66


Gratidão.
Diz a canção que saudade é pra quem tem. Gratidão também.
Esse reconhecimento de uma pessoa por um tempo por conta de uma reciprocidade, uma sintonia quase inexplicável.
Da janela do avião, visto pela inflexão do vidro, parece cinza amarelado o matiz dessa expressão. Eu esperava ver azul. Mas vi uma gradação difusa, feito fotografia gasta.
Vi até chuva, martelando a serra lá embaixo.
Tudo morno e molhado, em curso d'água quase impetuoso.
Um tanto antes, na cidade que não volta, vi marchinha de Carnaval.
Vi a menina linda com uma pena multicor numa das orelhas transitando o terminal, enquanto que eu, iogue no chão, lia.
De lá, de cima, no entanto, não vi o mar. Não vi resposta. Não vi sinal. Porém, gratidão.
Meus olhos, finalmente, descansavam os dias pesarosos ao prescrever a chuva cumprir seus desígnios.
Em Campinas, vi uma senhora sob guarda-chuva escuro e um rapaz de camiseta. Moviam-se ao mesmo tempo, mas com vagar, no saguão do aeroporto.
Horas que não passavam e eu gostava.
Saudade.
Do santo espírito, ainda ao amanhecer, vi chegada e berço. Fé e esperança. Os frutos de lá eram todos bem-vindos, pareciam dizer.
Agora, sim, sol em abundância, sucessivo de muitas coisas que eu veria mais. Gratidão, pois.
Decidi, então, já que ia de táxi até a velha vila, ficar um pouco mais. Ver deitar o sol sobre os braços deste primeiro eterno dia. E fazer dos sorrisos todos um abrigo de alegria. Depois partir, francamente feliz, abrindo a janela pra ver, sobre a terceira ponte, o horizonte cantando pra mim qualquer coisa assim sobre eu chegar.
Saudade.
Meus olhos, pousados numa esquina, aguardavam sossegados na brisa.
Via o burburinho da feira livre, debaixo da ponte, cheiro de frutas, pastel, morangos e caldo de cana. De uma porta um pouco além, ao lado de um bar festivo, surgiu todo aquele mistério. Até os fatos seriam assim, um tanto quanto misteriosos.
Então, eu vi. O mundo, eu sei. Carregando minha mochila nas costas.
Fui lá, andei ao lado, reconheci, olhei, abracei e segui um caminho só, buscando alguém que estava em minha memória há mais de um tempo.
Gratidão por aquele eterno amplexo.
Subi um lance de escadas, entrei numa porta à esquerda, senti o cheiro de casa limpa, peguei um travesseiro de fronha branca e coloquei sob a cabeça. Um outro, de fronha roxa, coloquei entre as pernas. Respirei aquele cheiro inesquecível e dormi.
Possivelmente, esse foi o primeiro sono leve do ano.
E acordei saudade.
Tudo aquilo que eu desejava ver estava no cômodo. Os calçados atrás da porta, a bagagem no chão, a cama baixa, o cachorro quase empalhado na estante, os gnomos guardados, o tempo.
O amanhã eu nem queria ver ou dizer.
Meu coração teimava em bater e sorrir a esmo, clareando minha vida nesse olhar.
Levantei, tomei um banho demorado, coloquei roupa leve e colorida e saí pra ver o sol. Tudo tão cheio de sol, que não fiz esforço pra acertar as esquinas. Me deixei guiar pelo cheiro do mar.
Um universo azul se abrindo sob o efeito de cada espuma que morria devagar na areia.
Gratidão ao horizonte.
Ao longe, navios cargueiros. Por perto, a água e o sal do mar gelado.
Como há muito não fazia, tornei a inventar meu tempo, sem viver do mesmo arranjo.
Saudade da costa da praia. Foi como nomeei meu jeito novo de sentir que estava ali, com a alma em bem-estar, com um princípio genuíno de vida, um riso e o olhar de pleno vigor.
Peguei uma cerveja e fui me deixando ir pelos caminhos.
E via crianças, cachorros, bicicletas, triciclos, prédios com varandas de vidro marinho, afetos e um sopro quente passageiro de fim de verão.
Sem notar, era noite.
Gratidão, de um lado a outro, pelo fim da tarde e era noite.
Eu podia ouvir o vento passar, podia ver a onda branda bater, eu podia ver morrer, acordado, aquele tempo parado. Eu podia ver um pórtico, uma escultura de Iaramar, um quase píer, uma casa sobre as rochas, um cheiro de cravo, um torpor na mente e o prazer de conhecer esse gosto sem igual.
A tal felicidade, sombreada na areia noturna, agora chama saudade.
Sentei, conversei, andei de encontro ao vento, respirei o mesmo ar, olhei de canto de olhos e vi outra vez, sorrindo, como um dia de domingo.
E acordei ao som de sinos.
Profunda gratidão àqueles sons marcando os dias.
De onde vinha aquela calma? Aquele jeito tão sem defeito do tempo.
Fotografei a saudade e segurei na mão dela. E, assim, calado, fui coroado com um sonho se exibindo pra minha solidão.
É preciso força pra sonhar e ver uma estrada que vai além do próprio ver. Vai até a madrugada. À casa mal-assombrada, ao teatro da praça, à escola da Marinha, à casa dos padres, à outra com os sete anões.
Os braços do tempo tocando nos meus.
Dentro dessa madrugada estiveram os olhos, as minúcias, o afeto, a verdade.
Então, abri meu coração pra um novo dia amanhecer e, atrás de um sonho, correr.
Além da praia, sem data pra voltar, deixando o tempo levar, havia um solitário pescador e sua pequena embarcação. Ele, o barco, o céu, os pássaros, o mar da cidade, o horizonte e o oceano em seu olhar a navegar. E as rochas dividindo uma enseada em outra, em níveis distintos.
Saudade dessa hora que ainda sinto.
Do cheiro de comida caseira, tempero, frigideira, suflê, mesa posta, ritual.
Isso que senti quando vi o tempo por trás da janela, dormindo, de pernas cruzadas. Um cheiro umedecido e embriagado de bom dia do ano.
Dia de fazer recordar algum triunfo. De se deixar encantar no exato lugar onde se está. De chamar um sentimento bom. De executar aquela ideia de fazermos um mundo inteiro, feito ele de calor e suor. Saudade destes minutos tão físicos, tão cheios de poros, sabores, gestos, movimentos e o corpo do tempo mapeado, tirado partido, sem quadradismo, só com o coração como expressão.
Não sei fazer poema de outra coisa que não fale senão de amor incondicional. Portanto, gratidão.
E quem diria não?
Subi um morro inteiro, sem tabela de preço, com sorriso largo e profundo, parte descalço, além de qualquer cansaço, buscando uma foto de cartão-postal colorido.
Aquela vastidão tão acima do moreno morro. Tão perto do céu, aquele estupor. E tanto mar.
Um presente infinito, um silêncio e, de novo, aquela voz do tempo que não quero perder.
Saudade.
Acenei pra quem me acompanhou com os olhos do outro lado da cidade, além da ponte principal, dos cargueiros, da avenida de nome estranho.
Pena de quem nunca esteve lá e depois, em cada despedida, saudando o sol, no caminho das pedras, até a Penha e sua romaria.
Saudade da presença de Sofia, a avó dos tempos todos.
Do cheiro de flor e de amoras. Dos retratos, das imagens fugidias, da vista e das pistas no trajeto, da orquídea, das caranguejeiras, da meditação na rocha, do terço e de todo o restante de lugar, do sagrado à escadaria.
Do píer, da marina, da restinga, da prainha com ondas breves, de molhar os pés no cais.
Da orla iluminada e do píer de Camburi.
Das tartarugas que não vi, dos patins e até da Cebola que só vislumbrei pelo portão.
Não há tempo como este que volte, então...gratidão.
Eu vim de longe, do outro lado desta terra, além das missões, por isso a falta que sinto deste mar vasto.
Da pesca, dos siris e até da noite chuvosa de verão.
Às vezes eu só queria descansar, deitar no ombro deste tempo, entrelaçar os dedos, morder meus próprios lábios, receber um tagaté, ser quase um.
E, assim, ia vendo o céu se pondo vermelho de sol, filho eu da eternidade, com vento sobre os pés, perdendo a hora e o lugar. Sem destino, um tanto sozinho, dançando com a solidão e acordando noutro instante da imensidão.
Tomei banho de phebo, raspei os pelos com navalha, juntei as frutas, o biscoito, o olho grego, calcei os tênis, vesti a primeira camiseta puída que encontrei na mochila de viagem, botei a calça clara e segurei o agasalho com o cheiro de sempre.
No dia último, nenhum alento, nenhum sopro, nenhuma declaração universal.
Da janela do ônibus, uma constatação final, cheia de soluço, saudade e gratidão: despedida eu vim. Bem se diz que todo Carnaval tem seu fim.

Marco Antonio Jardim Melo

sábado, 15 de fevereiro de 2014

OS SINAIS - Número 65


De quando tive a consciência despertada para o sentido da espiritualidade, até hoje, mesmo que estacionado em algumas práticas, percebo sinais. E eles me percebem também.
É um fenômeno presente, um vestígio do que se pensa, do que se quer, um artigo de fé.
Uma mancha na pele, uma cicatriz. Um aceno, um gesto.
Uma etiqueta para fora na camisa do principesco, uma assinatura cursiva.
Ou qualquer outra manifestação que pareça presságio, prenúncio.
É também o futuro. "O futuro não é um lugar que se chega. É um lugar que se constroi", alguém disse, como um sinal.
Estes lugares são como postes de luz e advertências para mim.
Um gato na porta do meu quarto. Uma borboleta na ponta do guarda-roupa. A estranha deferência com que minha mãe arruma meus pertences. Um agasalho que não perde o cheiro, deixando as coisas visíveis. Uma sensação sentida ao mesmo tempo em dois lugares diferentes por duas pessoas que se amam.
As mensagens do dia que me aparecem em trechos de revista, páginas de agenda, pedacinhos de papel.
O mundo inteiramente meu criado nos sonhos, nos desdobramentos, com vozes sussurrando: "tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais".
E eu não duvido, apesar de, por hora, quase esquecer.
É como o nascer do sol no horizonte de uma manhã de domingo, ou mesmo o pôr do sol fotografado da janela do corredor (fotografia perdida no celular assaltado, mas memória em sinal permanente).
O deus Sol egípcio, Amon-Rá. Diz-se que ele abria as pálpebras, o dia despertava e se espreguiçava. Daí ele se vestia, ia para a barca de ouro e seguia, silencioso, pelo oceano, distribuindo luz e calor. Mesmo que ele chorasse, suas lágrimas eram sinais de boa sorte aos homens, ao mundo.
O dia amanhecendo é uma bela marca e um meio para sorrir. E para trasladar em palavras, como fez Leminski: "Uma semana, um mês, um ano não dão para a saída. Nada passa igual a um dia".
Nesta soma de dias (ou os últimos cinco meses, pra ser mais preciso), de sinais, como o dobre dos sinos ainda não finado, caiu a chuva, caíram pitangas, e, agora mesmo, enquanto escrevo, é um sinal que eu tenha encontrado uma imagem em que minhas mãos se juntam em oração.
É o verão que ainda não se encerrou.
Espero eu, com serenidade, que tais indícios, permitam-se fechar este estio no Espírito Santo (vide o nome, já um sinal).
Lembro que, há alguns dias, estive caminhando sobre os paralelepípedos de uma rua mais estreita da minha cidade, carregando minha mochila e minha saudade, sob chuva fina misturada às lágrimas.
Eu era um átomo no átimo do tempo.
Sabia que a chuva passaria, então me enchi de poder, conhecimento, certeza e simplicidade.
Era um sinal vindo dos céus a me lembrar que eu sempre passei por ali.
Algumas pessoas também passavam por mim, cheias de vapor d'água, sorrindo com os olhos. Talvez, elas, compreendendo que aquele caminho que eu seguia tinha, ele próprio, uma história madrugal para contar.
Eu vivi os últimos meses em rede, como uma inteligência autônoma, livre, caminhando livre, conectado ao mundo por um simples aparelho de mãos.
Vivi interligado e, sobretudo, em sintonia fina com uma das pessoas que mais amo e que reconhecia, em tempo real, todo passo meu dado, mesmo em meio à maior confusão funcional do mundo, mesmo num apagão.
Eu via, e vejo, pelo celular, ou não, pela música escutada no fone de ouvido (canções que, cada uma delas, tem uma recordação afetiva), pelo folhetim, pelo próprio olhar dedicado às pessoas em volta, de variadas cores e línguas, e dizia para mim mesmo: "eu sou livre".
Então, derepente, fui agredido impetuosamente e de surpresa. Fui perseguido, fui assaltado, fui violentado na alma, refletida agora em marcas feridas no corpo.
Sinal.
Pareço oco (louco) nesta autoafirmação? Mas é que ainda tenho centro.
Levaram-me uma das máquinas mais fabulosas da humanidade no estágio atual (a dizer: um iPhone 5), mas ainda me oriento pelas estrelas.
Pelo mapa de Guimarães Rosa. "Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando".
E amando.
Este sentimento que empurra as criaturas, mas que nem sempre elas se dão conta, como o vento a impelir uma embarcação.
Naquele instante, eu estava pensando em viajar (se, de fato, eu for), já ansioso para ver o mar (e para abraçar por longos minutos abrindo a represa da saudade), e estive, por volta das 22 horas, com um companheiro na saída da academia. Não convivemos nos mesmos círculos, mas, em sintonia, ficamos a conversar por alguns minutos sobre o tom da vida, sobre a importância que damos ao dia de hoje. E logo nos despedimos com a frase "carpe diem". Ele ainda me ofereceu uma carona, um sinal. Virei a esquina sozinho e...agora estou onde estou.
Vivo.
Amor é isso, não é? Um pouquinho de qualquer coisa sem nome que dá um descanso, um respiro à loucura.
Fico pensando se "o outro lado" tão retratado pela angústia de Diane Arbus não fosse a figura principal. Se fosse apenas o dia em sua Rolleiflex, ou se ela tivesse uma máquina digital.
Pra mim, o sujeito de uma fotografia é a possibilidade de ver tudo nos mínimos detalhes, no dia. Dos pedacinhos de tafetá dos enfeites à cor azul do céu e âmbar da areia, do mar, do coração no asfalto, da expressão do meu corpo em evolução, do cactus que agora cuido delicadamente, da tentativa de registrar minha alma e das manifestações divinas.
O que me dói (e muito) é, com o assalto, eu ter perdido este álbum de recortes dos meus dias e um tiquinho da sensação de acreditar ser livre.
Rastreamos, identificamos, ativamos um barulho, choramos até.
Mas, numa clara mensagem de resignação, os dispositivos desta pequena pérola estão offline.
Quero ser, então, eu mesmo, editor das coisas que acesso, das pessoas que sigo, das redes que crio, do conteúdo que sorvo.
E você, Deus, vem chegando para brincar em meu quintal. Sim, eu já escuto os Teus sinais.

Marco Antonio Jardim